Seguir apenas o caminho que o GPS indica, sem recorrer às lembranças, causa alterações importantes na memória. Neurologista do INC, dr. Ricardo Krause fala sobre como o GPS pode afetar a memória.
Nas primeiras sete vezes que Caroline Farias, de 21 anos, dirigiu até o local de trabalho, ela usou um aplicativo de localização do celular para guiá-la. Hoje, embora não use o app para esse caminho específico, ela mantém o celular sempre à mão, caso entre em uma rua errada ou haja algum desvio inesperado. “Normalmente, quando eu vou para um lugar que já conheço o caminho, não uso o aplicativo. Mas se eu erro uma rua, eu não sei mais. Ainda mais nas ruas do centro de Curitiba, que são todas de uma única mão. Se erro uma delas, eu não sei onde estou. Sem o celular, volto ao início, para o lugar onde eu estava e refaço o caminho todo”, conta a assessora.
Caroline sabe que, se não tivesse o aplicativo à disposição, ela forçaria a memória a gravar os percursos que precisar, mas a insegurança em chegar atrasada, perder-se pela cidade e gastar gasolina sem necessidade faz com que a tecnologia seja sua melhor amiga no carro. “Sempre pegamos um bolo em um lugar perto do escritório e mesmo indo várias vezes lá, eu uso o GPS. Não importa se estou de carro, ônibus ou a pé. Eu ligo o aplicativo para ver se estou no caminho certo. Eu sou extremamente dependente, mas me sinto mais segura usando a tecnologia”, completa.
A pior experiência de Caroline foi quando a assessora precisou ir do bairro Ecoville para casa, na volta de uma reunião de negócios. “Estava indo atender um cliente e na ida o meu celular estava com bateria. Na volta, acabou. Eu parei em todos os sinaleiros, baixei o vidro e perguntei o caminho para as pessoas do Ecoville até próximo da rua Ângelo Sampaio, no Batel. Fui olhando as placas e os nomes das ruas. Quando vi uma que reconheci, me senti mais segura”, relata. Dependência de aplicativos leva à falha na memória, especialmente a de localização
Memória falhando
Embora a tecnologia seja uma facilitadora (e ninguém duvide disso), há um impacto dos aplicativos, como o Google Maps, Waze ou Moovit, que favorecem a localização do usuário, na memória. Conforme explica Ricardo Krause, médico neurologista, os estudos na literatura médica não são conclusivos com relação a uma mudança na anatomia do cérebro, mas há sim uma influência importante na memória. “Quanto menos eu usar a minha memória para gravar, menos eu trabalho com ela. Isso pode acarretar uma certa falha de memória, especialmente a memória recente”, explica o especialista, que é também chefe do setor de Demências e outros distúrbios da Cognição e do Comportamento (SEDDICC) do Instituto de Neurologia de Curitiba (INC), e preceptor dos residentes do mesmo instituto. Para evitar isso, vale estimular a memória de outras formas. “Eu posso deixar de gravar os números de celulares dos meus amigos, mas não deixo de trabalhar a memória. O tempo que eu usaria para gravar o telefone, eu leio um artigo científico ou me preparo para algum trabalho, e compenso”, reforça Krause.
Com relação à memória espacial (de localização), porém, o não desenvolvimento pode comprometer a habilidade de se localizar: “Hoje acaba sendo um fato inexorável, uma realidade da nova geração. Eles vão a qualquer lugar e colocam o GPS. Não fazem um mapa mental, não pensam no trajeto. E isso vai ser ruim se a pessoa ficar sem o aplicativo e passar dificuldades”, reforça o especialista.
Não vire refém do GPSO relato de Caroline não é único, e mesmo especialistas no assunto têm experiências a compartilhar, como o médico neurologista Gustavo Franklin: “Uma vez acabou a bateria do meu celular, e eu estava na estrada. Estava em alguma estrada ao redor de Curitiba e queria voltar para casa, mas não sabia bem o caminho. Para piorar, era noite e a gasolina do carro estava acabando. Quando finalmente achei um posto, eu tinha apenas 1,5 litro no tanque. Eu me perdi porque coloquei o caminho no GPS, mas mudei a direção em algum momento e me perdi”, conta o médico, que atua no Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC/UFPR).
Diante da própria experiência, Franklin é categórico: não vire refém das tecnologias. “No mundo ideal, a solução seria estimular ao máximo a memória. A primeira etapa para criar uma memória de longo prazo é ter interesse. Temos facilidade em aprender coisas que nos interessam. Sem interesse, aumenta-se a dificuldade em memorizar”, explica. Das demais etapas para criar uma memória de longo prazo, o neurologista Gustavo Franklin lista: Atenção e concentração. Ter foco naquilo que se está tentando aprender e levar em consideração que algumas doenças e condições podem atrapalhar, como transtornos de ansiedade, transtornos de déficit de atenção e hiperatividade, por exemplo. Com isso, podem levar a prejuízos da memória. Associação. Tudo que conseguimos associar com nossas vivências anteriores colaboram na memória de longo prazo. Se a pessoa só faz uso de tecnologias, esse fator acaba impactado, bem como a memória. Repetição. Mesmo quem não tiver uma capacidade de associar muito boa pode repetir a tarefa à exaustão e, assim, criar a memória. Conscientemente repetir uma tarefa. No caso de uma localização, seguir os mesmos pontos de referência, várias vezes, até criar a memória.
Fonte: Gazeta do Povo / Viver Bem - 03/05/2019